Mar, mar e mar
Fotografia Olho de Gato |
Tu perguntas, e eu não sei,
eu também não sei o que é o mar.
É talvez a lágrima caída dos meus olhos
ao reler uma carta quando é de noite.
Os teus doentes, talvez os teus dentes,
miúdos, brancos, agudos, sejam o mar,
um mar pequeno e frágil,
afável, diáfano,
no entanto sem música.
É evidente que minha mãe me chama
quando uma onda e outra onda e outra
desfaz o seu corpo contra o meu corpo.
Então o mar é carícia,
luz molhada onde desperta
meu coração recente.
Às vezes o mar é uma figura branca
cintilando entre os rochedos.
Não sei se fita a água
ou se procura
um beijo entre conchas transparentes.
Não, o mar não é nardo nem açucena.
É um adolescente morto
de lábios abertos aos lábios da espuma.
É sangue,
sangue onde a luz se esconde
para amar outra luz sobre as areias.
Um pedaço de lua insiste,
insiste e sobre lento arrastando a noite.
Os cabelos de minha mãe desprendem-se,
espalham-se na água,
alisados por uma brisa
que nasce exactamente no meu coração.
O mar volta a ser pequeno e meu,
anémona perfeita abrindo nos meus dedos.
Eu também não sei o que é o mar.
Aguardo a madrugada, impaciente,
os pés descalços na areia.
Eugénio de Andrade
"Tu perguntas, e eu não sei...
ResponderEliminarMas,
desta vez eu desisto
de lutar contra a merda"
Manel Cruz - Ainda Não Acabei
https://youtu.be/iZ1NYrPxtTA
AINDA NÃO ACABEI
Eu desta vez vou conseguir
desta vez vou largar
eu não estou farto eu cansei-me
do que apenas parece
eu não sei se eu sou forte
só que tenho este grito
não contem comigo
para ser sol na terra
eu vivi sempre em guerra
a lamber pés de puta
não percebo as razões
estou perdido na mata
de cabeça madura
sempre dando na fruta
desta vez eu desisto
de lutar contra a merda
eu sou feito de perda
é mais do que um desabafo
é uma voz que desperta
um consolo de abutre
no direito à vivência
do pacote completo
não lamento palavras
são o meu alimento
nem o amor que reservo
a quem me vê fora delas
trago a bomba no peito
não a trago no saco
tira-me o teu retrato
sem remorsos do assalto
quando não se tem alma
não se corre esse risco
tu não sonhas quem sou
tu não vês nem metade
só queria cantar
já não sei bem porquê
e perguntas então
porque não pões um fim
nessa vida sofrida
a resposta tem graça
é que eu adoro esta vida
ainda não acabei
vamos embora chorar
vamos embora sorrir
vamos embora sair
vamos embora ficar
vamos embora cair
vamos embora voltar
vamos embora ou não
são tudo coisas do chão
ainda não acabei