O negócio da salvação das almas*
* Hoje no Jornal do Centro aqui
A Netflix acaba de lançar o documentário “Apocalipse nos Trópicos”, da realizadora Petra Costa, que descreve a pegada cada vez mais pesada dos evangélicos na política brasileira.
O filme mostra a força do “influenciador” Silas Malafaia. Este televangelista de sucesso, que tem jatinho privado e tudo, explica que a intervenção mais decidida dos pastores na política começou há coisa de 15 anos. Perante as câmaras, o homem, de peito feito e retórica afiada, faz questão de lembrar que foi ele quem casou e baptizou e criou a personagem Jair Messias Bolsonaro, que a colocou no Palácio do Planalto, a teleguiou, a fez prantar o evangélico André Mendonça como “um instrumento de Deus” no Supremo Tribunal Federal.
Que tenha dado conta, este documentário ainda não originou buzz nenhum no comentariado e nas redes sociais portuguesas. No Brasil, está a abanar as águas. No Folha de S. Paulo, um “laico e pluralista” João Pereira Coutinho suspira por uma “separação entre o Estado e a Igreja” sem “excepções ideológicas” e pergunta “como foi que os evangélicos cresceram tanto no Brasil?”
A melhor resposta que conheço a esta pergunta é dada por Moisés Naím, em “O Fim do Poder”. Neste livro, aquele autor venezuelano explica-nos o sucesso das “novas igrejas protestantes evangélicas, pentecostais e carismáticas” no “negócio da redenção”. Nos primeiros dez anos do século, “meio milhão de católicos” deixaram “a igreja todos os anos”.As quase duas horas de “Apocalipse nos Trópicos”, divididas por quatro capítulos e um epílogo, exibem um factóide que vai fazer as delícias dos apreciadores de teorias da conspiração: em 22 de Julho de 1963, um Henry Kissinger alarmado com a influência dos padres marxistas brasileiros da teologia da libertação enviou um memorando ao presidente Richard Nixon a avisá-lo que a Igreja Católica já não era confiável na região. E que esse memo teria estado na origem da expansão evangélica. Matéria para dúvidas e conspiranoiquices, claro. Uma coisa é certa, depois disso muitíssima água correu debaixo das pontes e, se é verdade os EUA terem sido os pioneiros na exportação deste negócio anticomunista da salvação das almas, não é menos verdade, como explica Moisés Naím, os líderes deste mercado serem agora o Brasil e o Quénia.
O sucesso das comunidades evangélicas assenta na sua boa “adaptação às circunstâncias locais” e num “nicho de negócios bem pensado, em todos os aspectos, desde a doutrina” ao “espaço e tempo da oração, comodidades e serviços comunitários, como cuidados infantis, auxílio na procura de emprego”.
Depois de ter alastrado na América Latina e África, agora a expansão é para a Europa. A geração do pós-guerra e os seus filhos libertários de Maio de 68 construíram uma Europa secular, com uma separação perfeita entre assuntos espirituais e assuntos políticos. Infelizmente, como descrevi aqui na semana passada, esse edifício institucional magnífico, que tanto contribuiu para a liberdade e a autonomia das mulheres, está a ser corroído pela aliança das esquerdas radicais com os islâmicos e a aliança das direitas radicais com os evangélicos.


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