as ilhas do fim do dia
Fotografia de Trude Fleischmann |
no fim deste tapete
repousam todas as caixas de música
a que entretanto hei-de voltar
yannis não estava errado
não é mentira que vim
aqui para guerrear
com os teus gatos em makronissos
com os teus poemas dentro de jarros
enterrados no chão não para enganar
os guardas dos campos
mas para neles melhor
germinarem ervas aromáticas
morangos, girassóis, enganos subterrâneos
alimentados a sol e terra até chegar
à quietude do meio-dia
numa taberna fora do caminho
que caralho me importa
se há uma pena de ti
um lamento pela tua vida
na sentimentalidade com que aqui regresso
há pedaços da tua história a cada esquina
e eu conduzo este carro para dentro
e fora de barcos
milhas e milhas de calor e pó e oliveiras
e vou juntando o que vou aprendendo como cacos
e a paz da solidão e da música
sondando-me no retrovisor
e eu achei que sabia
o que tinha sido a tua vida
como era ter o mundo para dizer
e só ter dez linhas e mais nada
nem espaço para escrever o nome
dela no postal
nem um nome inteiro que fosse
só o diminutivo para poupar espaço
e o cheiro do perfume dela atingir-te
no momento em que a cabeça
se distrai e a caneta hesita no cartão
enquanto deitas contas
às poucas linhas que te restam
as mesmas que um censor há-de corrigir
eu achei que sabia o que tinha sido
a tua vida yannis e vim à tua procura
dentro e fora dos cercados dos campos
e por entre os laranjais
a visão fugidia de como podia ter sido
um dia desses há tantos anos
dentro da tua cabeça
e um comboio apanhado no pireu
depois de sair do barco com um saco
de cerejas na mão e calções e sandálias
eu pensei que peregrinatio ad loca infecta
era um conto todo português
mas o bilhete de regresso pode sempre ser
sair daqui em direcção a babilónia
só os parvos podiam aplaudir
a ideia de que é só em literatura
que tudo pode acontecer
mas o mapa da tua vida yannis
chega como as primeiras ilhas
a que se chega de noite e depois
de muito tempo no mar
a jogar às cartas com velhos
com quem não se pode bem conversar
e as luzes dos portos são todas as noites
em que o teu cansaço
foi usado como um instrumento
contra ti e são igrejas
nos penhascos viradas para o abismo
um salto cego lá do alto
para melhor celebrares o teu santo na páscoa
o vermelho a marcar-te o pescoço
na solidão desta paisagem desolada
devia bastar que tivesses dito
plantei aqui uma árvore
vi-a crescer
não me vou mexer daqui
tu armado em ceres esfomeada
mas ninguém que te tivesse amado tão pouco
ou odiado tão pouco
que te tivesse concedido só
a imobilidade das árvores
o trabalho cuidadosamente enredado
de aranhas brancas junto ao tronco
nem no labirinto destas ruas claras
por onde só um vento que se levanta
da beira do mar em junho e corre nas tardes
como só o tempo pode correr em ampulhetas
nem nada tão fácil como isso
nem só a respiração difícil dos anos quando passam
nem adormecer numa cama de lençóis brancos
que outros cuidados engomaram à espera de ti
nem o mar tão ao longe
subindo da tarde até todas
as cidades e toda a gente
que enchem os teus sonhos
de palavras que valiam a pena
e transbordaram pelas margens da inconsciência
reais todos eles e todos eles
dispostos a falar sobre ti
para que a tua vida não se perca
em luas que mudam e estradas que se fecham
e eu achava que sabia o que tinha sido a tua vida
e era a tua vida o que eu queria trazer comigo
que palavras e que pena
eu pergunto-me onde
e quando e porquê e quem
terá soltado os cães e trazido os soldados
que mais tarde chegam
cheios de sede como náufragos
à beira dos teus versos
e vigiado cada uma das horas dos teus dias
em cada esquina um campo de concentração
e o teu país a encher-se de cegos
porque é preciso ver apenas e documentar
as horas dos teus dias
e tudo o que entretanto
deixar de ser visto é uma cegueira
para que eu possa vir aqui tanto tempo depois
ler as cartas dos teus amigos, dos teus parentes
e procurar-te sem destino e sem sossego
por tanto tempo quanto o que me reste
a tentar perceber o que foi o preço
de cada canção seguinte
sempre com uma aparência de não haver esforço
tu entre os guardas e as grades e as vedações
palavra a palavra juntando-se
como flocos de neve para uma tempestade
Tatiana Faia
Lavrio, 28 de Junho de 2014
Oxford, 10 de Julho de 2016
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