Doxa
Fotografia de Paul McDonough |
Fiquei e me esqueci de que teria que haver ficado,
trabalhando, talvez. E abri os olhos, muito,
fiz uma barraca com os cotovelos e o encontro das mãos.
Pus a cara em cima. Esta película abrasiva,
minha auréola capilar que começa a tremeluzir
entre as palmas, isso
não pode ser minha glória. Não me vanglorio em nada
que avise quando vai manifestar-se;
ou jamais me vangloriei, ou jamais soube com que me vangloriar,
e como. E estes olhos,
a pele do nariz, o caracol dos ouvidos,
o breve copo de água da consciência, isso,
só posso ver quando me olho ao espelho,
ou o vêem os outros sem que eu perceba,
ou me percebo nos demais. E está certo que assim seja,
suponho. Onde, então, está minha rocha,
me pergunto, minha força, meu penhasco?
Tem que haver algo em mim que brilhe mais
para além de mim, ou vá brilhar alguma vez, ou
já o tenha, talvez sem me dar conta. E algo me ocorre:
quando era um embrião, quando me fizeram,
a esfera de epitélio que tentava, alheia a mim,
moldar a simples forma que era eu, olhava para fora,
tubo enrolado, e novamente enrolado,
com o estômago e o fígado indistintos, e os ouvidos e a boca:
a mesma superfície, uma só luva,
única flor-esponja pousada sobre o mesmo e único eixo,
fisionomia pura no ar bagunçado do ventre de mamãe.
Devia haver um brilho ali que se perdeu quando a cara já formada
engoliu todo o resto, quando por um pudor que não me foi dado escolher,
— por acaso a criatura protesta ao criador: “por que me fizeste assim??" —
um resto desta graça ocultou-se nas sucessivas dimensões desdobradas,
aquele aumento surdo de espessura e entidade
que me permitiria ver o mundo como um mundo, em breve.
E agora estou pensando nesta parte que ficou indigesta,
e há algo que me arrasta, uma corrente subcutânea ou algo
quiçá menos solene, ao nome que me deram
para me dar força. Tamparam com um nome
irrepreensivelmente israelita uma metade minha.
O que era que queriam, que eu soubesse
que se quisesse assemelhar-me ao que viria a ser,
teria que ser diferente disso?
Minha graça: um trava-línguas perfeitamente hebreu.
Acaso tratava-se de algo assim como um Scrabble da identidade,
pensavam que dariam mais créditos na vida a seu filho
por tanto z e este q e o w?
Se havia alguma coisa em mim que não era idêntico a si mesmo,
não era melhor, talvez, deixar visíveis as costuras?
Se no fim das contas a matriz que me gerou
jamais ouviu falar quando criança sobre o gueto,
nem teve que saber na própria pele o que é o exílio,
até que, bem, meu pai se exilou
Se além disso foram eles que me criaram,
os da parte árabe, do Líbano, católica, ou católica a seu modo,
que apagaram do meu nome.
Eles também tinham filho no exílio:
talvez ele também estabelecera sua aliança no deserto,
e o carregaram como a Elias. Mas pagou o sangue,
porque era de outro povo. E o sarcoma
cobriu suas costas como um mapa.
Queriam que eu fosse seu Eliseu, que tomasse
os dois terços de seu dom?
Acontecia até que me chamassem por seu apelido, às vezes.
Era demais para mim, um árabe impossível;
para um judeu falso, um circuncizado fraudulento,
que consagrou sua aliança no quirófano
com o deus ciumento da fimose,
(lembro-me como era, um sino túrgido,
um girassol de água ao urinar).
Era demais para mim. Pensei que seria melhor fazer
como uma ferida que quisesse suturar-se por dentro
para deixar a cicatriz coberta e proteger melhor
a pele. Abriu-se de qualquer maneira. Engordei e rachou,
como uma taça de cristal barato. Encheu-se de estrias,
uma retícula fina, fragmentária, sobre o plano vertical
das axilas até os glúteos, mistura do desenho
de uma árvore genealógica desprovida de sua fronde
e o mapa do genoma. A que ou a quem
haveria de culpar, à genética, à frágil epiderme de mamãe,
ou àquela força primígena desencadeada,
esta dispepsia primordial que faria da indigestão
a principal de minhas paixões? A resposta
lutando por cair num apêndice sem saída, disfarçada de um crédulo
ceticismo sem objeto que, mais tarde,
demonstraria ser uma nescidade temerosa, redobrada
sobre sua própria falta: dela esquivava-me ou apenas
a adiava? Não sabia que sabia. E escolhi aferrar-me
à intuição, um pouco frívola e pueril,
de que meu centro geográfico, minha casa, não podiam ser
o fole alveolar e o leque delicado do espírito.
E agora, que fico e que me esqueço, que finquei
minha barraca com os cotovelos e os braços, e a cara submergida
entre as palmas, como um cântaro que cai virado
e se quebra, sem saber, ao lado da fonte,
estou caindo numa idade em que preciso
de um substituto digno para a alma:
para colocar-me em movimento, e lembrar
e lembrar-me. Um sucedâneo digno de um sectário
forçado. E o assento do meu amor,
o capitólio do meu juízo, deve ser, destarte,
este baluarte hepático, a glória empoeirada
dos meus antepassados, os que não voltaram:
o saco ponderal, a pedra oca,
o copo sujo em que se misturaram.
Ezequiel Zaidenwerg
(tradução de Ricardo Domeneck)
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