Safáris a humanos em Sarajevo e em Kherson*

* Hoje no Jornal do Centro aqui

Esta semana soube-se que a procuradoria de Milão está a tentar identificar participantes italianos nuns safáris a humanos que foram feitos durante o cerco a Sarajevo (1992-1996), crimes repugnantes que em Itália, como são passíveis de condenação a prisão perpétua, não prescrevem.

O que se passou foi descrito assim aqui, no Olho de Gato, em 28 de Fevereiro: “na guerra da Bósnia, durante os quatro anos de cerco a Sarajevo, houve estrangeiros ricos que pagavam pela oportunidade de poderem disparar sobre civis a partir das posições dos snipers sérvios. ‘Sarajevo Safari’, um documentário de 2022 realizado por Miran Zupanic, descreve este turismo sinistro.”

Ora, o que me levou, e leva, a escrever sobre este sadismo predador é fácil de explicar: ele está a repetir-se na Ucrânia, onde, para além de espingardas com miras telescópicas, temos “operadores russos de drones que se treinam a perseguir e executar civis na cidade ucraniana de Kherson”. “Há vídeos deste safári a humanos em canais russos do Telegram.”

A guerra leva sempre a isto: homens a serem lobos de homens. Que me perdoem aqueles bichos por esta metáfora para eles injusta.

Aquilo a que chamamos civilização é uma camada fina de verniz sempre pronta a estalar. Tony Judt, num ensaio publicado na The New York Review of Books, em Maio de 2008, lembra que a guerra “foi a condição antecedente crucial para a criminalidade em massa da era moderna”:

— foi por causa da Guerra dos Bóeres (1899-1902) que “os primeiros campos de concentração foram criados pelos britânicos”;

— “sem a Primeira Guerra Mundial [1914-18] não teria havido o genocídio arménio e é muito pouco provável que o comunismo ou o fascismo se tivessem apoderado de Estados modernos”;

— houve Holocausto porque houve a Segunda Guerra Mundial (1939-45);

— “sem o envolvimento enérgico do Camboja na Guerra do Vietname, nunca teríamos ouvido falar” dos dois milhões de mortos causados pelo comunismo demencial de Pol Pot.

É sempre assim. Foi em Sarajevo. É agora no Donbas — assassinos russos, ao comando de drones, matam civis por divertimento e colocam as filmagens, como troféu de caça, no Telegram.

Quando acabar esta guerra, vai ser muito problemático o regresso de centenas de milhares de militares com o compasso moral avariado e habituados a soldos muito superiores aos que vão receber na vida civil. 

O erro estratégico que Putin cometeu em 24 de Fevereiro de 2022, ao trespassar as fronteiras de um seu vizinho pacífico, vai reverberar por muitos e muitos anos. Como lembra Tony Judt, o “efeito brutalizador da guerra sobre os soldados é um tema que está copiosamente documentado.”

A guerra no Afeganistão (1979-1989) levou ao fim da União Soviética. Não será fácil a Putin sobreviver ao fim da guerra na Ucrânia.

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