Não te iludas, não te desiludas
Fotografia de Khaled Hasan |
Não te iludas, não te desiludas
não há ninguém do outro lado
da linha, não precisas de bateria
para te ligarem,
nunca serás tu a pagar rodadas,
és invisível e não vale a pena
tentares gostar de vinho.
Não te iludas,
nada te tenta como uma romã antes
do tempo delas, frésias em dezembro
podem ser comoventes
mas não são frésias ou não é dezembro,
ninguém tas estende.
Se parecem pétalas nos cabelos das crianças
não são tuas. Não te iludas,
acende a luz.
Não te desiludas,
não há quem goste de ti e de dióspiros,
podes tentar, mas não tentas ninguém,
és uma solução fácil,
demasiado prosaica,
os teus versos não convencem mulheres
melhores
homens
crianças,
principiantes de toda a sorte,
riem-se das tuas palavras
e do teu dia-a-dia banal. Não há o que esconder
para além do despertador
e do comboio, nem entre uma coisa e outra.
Não te iludas,
podes ter inventado alguma coisa quase grande,
mas a dor da queda sente-se especialmente no
calcanhar. (Era a última curva que te prendia
ao chão a que voltarás e pertences.)
Havia uns sapatos vermelhos, sorrisos grátis e outras
formulações previsíveis
que te encantaram
porque vinham do outro lado da rua,
mas
não te desiludas:
um copo de vinho é um copo vazio
antes ou depois de teres dito tudo,
se é que alguém esticou os dedos.
As tuas estrofes são demasiado
iguais, serves-te
de um dicionário escolar
e o teu melhor poema foi o primeiro.
Não te desiludas,
os outros são sempre outros.
Não vale a pena ofereceres-te para escrever
sms ou requerimentos,
os teus desejos são irrevelantes
face a um novo par,
os saltos altos fazem pessoas diferentes.
Não te iludas
não corras, nunca terás o calçado
adequado para cada ocasião
– dança descalço –
não espreites perfis alheios
não te deixes embalar pelo toque de chamada,
a voz da operadora telefónica
lê todos os sinais que dizem que não és desejado
antes de encostares o peito ao que te estendem.
Não corras,
sem pressa evitas melhor chegar à verdade
(não há mais de mil verdades)
e saber que o fim
não é quando rodas o botão
e o fogo azul se apaga.
Margarida Ferra
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