Nuvens

Fotografia de Mark Sink


No dia triste o meu coração mais triste que o dia...
Obrigações morais e civis?
Complexidade de deveres, de consequências?
Não, nada...
O dia triste, a pouca vontade para tudo...
Nada...
Outros viajam (também viajei), outros estão ao sol
(Também estive ao sol, ou supus que estive),
Todos têm razão, ou vida, ou ignorância simétrica,
Vaidade, alegria e sociabilidade,
E emigram para voltar, ou para não voltar,
Em navios que os transportam simplesmente.
Não sentem o que há de morte em toda a partida,
De mistério em toda a chegada,
De horrível em todo o novo...
Não sentem: por isso são deputados e financeiros,
Dançam e são empregados no comércio,
Vão a todos os teatros e conhecem gente...
Não sentem: para que haveriam de sentir?
Gado vestido dos currais dos Deuses,
Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício
Sob o sol, alacre, vivo, contente de sentir-se...
Deixai-o passar, mas ai, vou com ele sem grinalda
Para o mesmo destino!
Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho,
Vou com ele sem desconhecer...
No dia triste o meu coração mais triste que o dia...
No dia triste todos os dias...
No dia tão triste...
Álvaro de Campos


Comentários

  1. Nuvens americanas...

    A mensagem chegou ao início da manhã: ”via procurar e ouve o discurso da Meryl Streep nos Globos de Ouro. Excelente!”

    Registei, agradeci e arquivei. “Quando puder e tiver paciência”, pensei. Com Meryl Streep mantenho uma relação de amor/ódio de há muito tempo. Capaz de me deixar fascinado, capaz de me chorar o dinheiro do bilhete do cinema. Reconheço que teria ido, de imediato, ouvir a intervenção de um San Penn ou de uma Susan Sarandon.

    Mas, lá fui procurar e intervenção da Srª. E fiquei rendido com a inteligente construção e escolha do texto. Cada frase é um testemunho, uma espécie de axioma, um grafito, um aforismo com a força de sentença moral. Os grandes combates cívicos pela liberdade, as grandes causas em louvor dos direitos humanos, as "avenidas do diálogo", como dizia António Sérgio, têm tido nos EUA grandes representantes na afirmação de o Homem como a medida de todas as coisas.

    Cito Meryl Streep: “Este instinto para humilhar quando é moldado por alguém que está numa plataforma pública, por alguém poderoso, consegue infiltrar-se na vida de toda a gente. Desrespeito convida ao desrespeito. Violência incita à violência.” Precisamente porque pior é sempre possível, convém ir apoiando (publicamente e na hora) os que procuram defender a manutenção dos pilares fundamentais de uma sociedade civilizada.

    “Só é vencido quem desiste de lutar!" – Mário Soares

    Discurso de Meryl Streep contra Trump. El mejor momento de los Globos de Oro - YouTube

    https://m.youtube.com/watch?v=ME5VyoctLYo

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