Na véspera de não partir nunca

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Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranquilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fitando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!
Álvaro de Campos



Comentários

  1. Cada um Cumpre o Destino que lhe Cumpre
    Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
    E deseja o destino que deseja;
    Nem cumpre o que deseja,
    Nem deseja o que cumpre.
    Como as pedras na orla dos canteiros
    O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
    Que a Sorte nos fez postos
    Onde houvemos de sê-lo.
    Não tenhamos melhor conhecimento
    Do que nos coube que de que nos coube.
    Cumpramos o que somos.
    Nada mais nos é dado.

    Ricardo Reis, in "Odes"
    Heterónimo de Fernando Pessoa

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