Verão* — Ele e ela (#0)**

* Texto publicado no Jornal do Centro há exactamente dez anos, em 22 de Julho de 2005
** Série que pode ser lida toda nesta etiqueta: Ele e Ela 


Verão

Estava ainda calor, apesar do sol há muito se ter escondido debaixo do mar, para os lados de Aveiro.
Ele e ela iam na Avenida da Europa, a pé, lado a lado.
Eles tinham-se habituado àquela hora de caminhar. Era diária aquela rotina de Verão. Sem pressa, mas também sem paragens, entendiam aquele passeio como uma terapêutica. Era uma hora a gastar energia; um substituto dos ginásios, cansativos demais, caros demais.
Todas as noites de Verão, aquela era a hora de caminhar. Primeira etapa: de casa até ao relógio do Polis. A seguir, Avenida da Europa para cima e para baixo. Cinco quilómetros, mais coisa menos coisa.
A casa ficava, de janelas abertas, à espera da brisa da meia-noite.




— Afinal, sabes, tudo o que nos está a acontecer é porque Portugal é pobre.
— De espírito.
— Lá estás tu. Sempre a mangar. Sempre são seis vírgula oitenta e três de défice, disse o Constâncio.
— Vírgula setenta e dois. Contas erradas. É um problema, a matemática. A matemática dele, do Constâncio.

— Isto está mal. Nós somos pobres.
— O problema não é sermos pobres. O problema é termos cada vez menos gente nas aldeias.
— Não percebo.
— Pois.
— Explicas?

— Há um livro agora que se vende muito que diz que o mal dos portugueses é a inveja. Eu não li. Ouvi falar nele. É de um filósofo. Qualquer coisa Gil.
— Não conheço. Filósofos só conheço o pai do Dinis.
— Esse? Vai ter uma vitória bárbara. Tem muitas ideias num documento, no computador; mais de trinta mil vezes bateu ele no teclado.
— Achas que ele ganha?
— De Caras.
— Ao menos isso… Mas não percebi a das aldeias.
— Pois.
— Explicas?
Fotografia Olho de Gato

— Gosto de caminhar por esta Avenida da Europa abaixo. É a descer. Cansa menos.
— Estás cada vez mais preguiçoso, mais langão.
— Pois. Põe-me defeitos, que eu gosto…
— Olha para a tua barriga…

— Gosto de ver a Sé daqui. Gosto de ver o prédio da caixa.
— Dizem que é para deitar abaixo. Pelo menos cinco andares.
— Vai ser tudo no mesmo ano. Eles prometeram. Em 2015, implodem o prédio e inauguram o TGV. O Barroso e o Aznar vão ser os maquinistas e o Ruas vai ser o pica-bilhetes.

— Pois. Mas ainda não explicaste o problema de haver menos gente nas aldeias.
— É como te digo. Isto é um país de invejosos. É o que diz o qualquer coisa Gil. O filósofo. No tal livro que te falei.
— Já disseste isso. Também acho. Há muita inveja.
— Muita. Há mais inveja que Porsches. Viste aquele? Ia a mais de cem. Lindo!
— Em Viseu há gente com muita guita.
— Deve ser empreiteiro.
— Futebolista, talvez.
— Estás pior da cabeça! Então não sabes que o Académico está de rastos?
— Tá bem. É verdade. Mas podia ser aquele rapaz do Boavista que namora a Marisa Cruz. Ela vem cá muito a Viseu. É de cá. Ouvi dizer.
— Também ouvi dizer que ela é de cá…

— A Marisa podia dar-nos o Euromilhões. Isso é que nos dava jeito.
— Fazíamos uma vivenda na Quinta do Bosque…
— Do Lago…
— Do Bosque. Uma casa com piscina.
— Então não íamos viver para o Algarve?
— Não. Eu gosto da minha terra. Vai tu para o Algarve, se quiseres.
— Mas eu sempre quis uma casa à beira-mar…

— “A minha alegre casinha tão modesta à beira-mar”. Tivesses ido ao IberRock. Ouvir os Xutos.
— Com o bilhete a dezoito euros?
— Pois é. Não dá. A culpa do défice é dos professores…
— Tens razão.
— Foram os professores que puseram o país de tanga. Seis vírgula setenta e dois de défice!
— Mais ou menos isso.
— Depende se as contas estiverem bem. Os professores nem as contas ensinaram a fazer ao Constâncio. Os professores fazem muita sorna e reformam-se cedo. Foram eles que desgraçaram o país.

— Há quem diga que foram os polícias.
— Viste? Não multaram o gajo do Porsche.
— Uns calões! Não explicaste ainda aquela das aldeias…
— Fica para outra vez.

— Menina, dê-me um Cornetto de morango, por favor.
— Para mim um Magnum branco…

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