Saber Viver



Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(«Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?»)
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.

Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em «grande parva, que ele há tanto homem!»

(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?...)

Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...

Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?

Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!

Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.

Quimera do Ouro, 1925


Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os teus sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...

Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrançais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
...sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...

Dize tu: - Já começou, porém, a racionalização do trabalho.
Direi eu: - Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!
Alexandre O'Neill


Comentários

  1. E ainda:
    "Bom e Expressivo

    Acaba mal o teu verso,
    mas fá-lo com um desígnio:
    é um mal que não é mal,
    é lutar contra o bonito.

    Vai-me a essas rimas que
    tão bem desfecham e que
    são o pão de ló dos tolos
    e torce-lhes o pescoço,

    tal como o outro pedia
    se fizesse à eloquência,
    e se houver um vossa excelência
    que grite: — Não é poesia!,

    diz-lhe que não, que não é,
    que é topada, lixa três,
    serração, vidro moído,
    papel que se rasga ou pe-

    dra que rola na pedra...
    Mas também da rima «em cheio»
    poderás tirar partido,
    que a regra é não haver regra,

    a não ser a de cada um,
    com sua rima, seu ritmo,
    não fazer bom e bonito,
    mas fazer bom e expressivo...

    Alexandre O'Neill"

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    1. Uau!, caro anónimo, fica aqui tão bem este "Bom e expressivo"...
      Muito obrigado!

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