Murmúrio *

* Publicado hoje no Jornal do Centro

1. Foi uma pena o filme “Tournée”, apesar de premiado no Festival de Cannes de 2010, não ter tido vida que se visse nos cinemas. 
    
O realizador, Mathieu Amalric, faz ele próprio a personagem principal: interpreta um produtor chamado Joachim Zand que reúne um grupo de americanas bem-dispostas, com curvas generosas e tremeluzentes, que brilham num espectáculo de “novo burlesco” para adultos, em salas de terceira categoria na França de Sarkozy, todas a sonharem que o show culmine com a epifania do sucesso em Paris.
     
Em qualquer lugar a que chega, Joachim pede para desligarem as televisões — como se, assim, com o silêncio que sobreviria, fosse carregado o botão “pause” da marcha do tempo, tempo que corre contra ele. O problema é que ninguém lhe faz a vontade. Nada interrompe a cacofonia proveniente dos aparatos.

     
2. No meu bairro há um café excelente, com uns pastéis de nata magníficos, mas cuja ecologia é estragada por duas televisões sempre ligadas com som alto o que põe a clientela a falar alto para se ouvir por cima do ruído de fundo.

Num notável discurso em 2009, Umberto Eco bateu-se pelo “regresso ao silêncio” e lembrou que “é apenas no silêncio que funciona o único e verdadeiramente poderoso meio de informação que é o murmúrio”.

Há que ultrapassar o medo do silêncio, medo que plantou “som ambiente” em todo o lado. Até para dar sentido à esperável generalização dos veículos eléctricos.

3. Em 29 de Março de 2002, o primeiro Olho de Gato saiu com este título: “O real tem muita imaginação”. Porque, como então escrevi, “por mais que tentemos perceber as coisas e o mundo, há sempre algo que nos escapa, e é esse ficar aquém e além, é essa distância que dá sal à nossa vida e combustível ao nosso espírito.”
     
Aqui se vai continuar a gastar desse combustível numa escrita em desacordês.

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